REFLEXÃO - O CONSELHO DE GAMALIEL.



Por que sou conservador neste mundo de progressistas, inovadores e apressados?


“Israelitas, atentai bem no que ides fazer a estes homens. Porque, antes destes dias, se levantou Teudas, insinuando ser ele alguma coisa, ao qual se agregaram cerca de quatrocentos homens; mas ele foi morto, e todos quantos lhe prestavam obediência se dispersaram e deram em nada. Depois desse, levantou-se Judas, o galileu, nos dias do recenseamento, e levou muitos consigo; também este pereceu, e todos quantos lhe obedeciam foram dispersos. Agora, vos digo: dai de mão a estes homens, deixai-os; porque, se este conselho ou esta obra vem de homens, perecerá; mas, se é de Deus, não podereis destruí-los, para que não sejais, porventura, achados lutando contra Deus.” Gamaliel [Atos 5:35-39]


É difícil afirmar com certeza qual seria a nossa reação a determinados acontecimentos se tivéssemos vivido no passado. Nossos julgamentos são parciais e anacrônicos, não compreendemos adequadamente o espírito da época, e nem conseguimos superar a distância histórica, metodológica e subjetiva. Tudo o que podemos fazer é realização de um exercício de imaginação, e reconstituição dos fatos, a partir do método que Ginzburg denominou de paradigma indiciário, um exercício de investigação e imaginação históricos.


Se vivêssemos na Judéia nas proximidades do ano 70 da era Cristã, estaríamos ao lado de Roma no combate aos rebeldes contra o império, ou dos revolucionários que acreditavam estar libertando Jerusalém iniciando uma era messiânica? Se estivéssemos na América em 1861, no lugar do General Lee, optaríamos como ele pela causa da Virgínia, o seu Estado, ou estaríamos a serviço das forças da União? Se vivêssemos na França nos dias Revolução, e pertencêssemos ao diretório, nos sentaríamos a direita com os realistas, no centro com os girondinos ou à esquerda com os jacobinos? Se fizéssemos parte do Sinédrio na histórica sessão que julgou os apóstolos de Cristo, estaríamos entre os favoráveis à sua condenação por blasfêmia e incitação de tumulto público, ou entre aqueles, mais cautelosos que como Gamaliel, acreditavam que o julgamento deveria ser deixado a juízo de Deus no tempo, considerando que condenações precipitadas poderiam resultar em equívocos de processo, em lutas contra Deus?


No meu caso por questão de temperamento e índole estaria provavelmente entre os conservadores em cada caso específico. Não tenho nada a dizer em minha defesa. Sou um caso difícil... Segundo minha mãe, já nasci velho! Acrescentariam os meus amigos, que sou preconceituoso e ranzinza. No campo das ideias estaria mais para Hobbes do que para Rousseau. Acredito que o homem é o lobo do homem e não um bom selvagem, pobre vítima da sociedade. Sou conservador entre outros motivos porque tenho dificuldades crônicas, com o politicamente correto. Não me sinto inclinado a dizer que “vai dar tudo certo”, quando as evidências apontam em outra direção. Gosto mais do pessimismo de Spengler e do fatalismo cíclico de Toynbee do que do otimismo historicista de Comte, Marx ou da teologia liberal. Não troco com facilidade a minha foto do perfil do Facebook para aderir a qualquer campanha, e muito menos serei visto usando filtros coloridos por aí... Pode ser difícil de acreditar, mas não compartilho hashtags de campanhas identitárias. Quando todos, estão comentando sobre um livro, ou filme, eu logo antipatizo pela obra, e procuro ler, ou analisar a mesma na ótica reversa ao que todos estão considerando. Foi assim com Matrix, até hoje acho uma porcaria. Nárnia, prefiro Senhor dos Anéis, não gosto daquela mistura de elementos simbólicos... Crônicas de Gelo e Fogo, bom pretendo ler desta vez... Quem sabe eu goste? Avatar, bom sobre este último, prefiro nem comentar. 



Sou como o patinho feio, o personagem do conto “Den grimme ælling” de 1843 de Hans Christian Andersen não me sinto muito à vontade entre os patos da lagoa, sou de uma espécie exótica, desengonçada, cinzenta e antipática que foge do lugar comum. Sinto-me à vontade lendo Chesterton e Scrouton e bem pouco à vontade lendo o Pequeno Príncipe e Mundo de Sofia. Lamento, mas sou conservador e um pouco chato. Eu sei...


Como você pôde perceber até aqui o conservadorismo é uma forma de pensamento pautada na prudência, no realismo cru que procura observar as coisas como são, e na noção de que a existência individual não rompe num voluntarismo mágico, a tessitura dura das realidades históricas e dos fenômenos sociológicos de longa duração. Da pressuposição que os grandes consensos humanos e as verdades morais e espirituais não podem ser simplesmente descartados como se fossem desprovidos de sentido. Pretendo aqui apenas corrigir algumas incorreções e caricaturas que comumente são apresentadas como o pensamento conservador.

Ser conservador, ou tradicional não significa ser indiferente. Isto não é verdadeiro, conservadores também se importam. Na verdade, em nossos esforços por preservar a tradição fundante da cultura ocidental, encontramos no cristianismo a solidariedade para com os dramas humanos, e a demonstração concreta do amor ao próximo, em resposta ao amor e graça divinos. Amamos porque ele nos amou primeiro. Reconhecemos neste legado do evangelho o profundo valor da tradição judaico-cristã. Poderíamos dizer que sem a “dignidade humana” esta noção teológica derivada da “imago Dei”, o viver contemporâneo seria destituído de sentido, não teríamos os direitos humanos, e as instituições modernas seriam completamente desfiguradas sem o capital emprestado da tradição judaico-cristã. O Deus revelado nas escrituras hebreias, não é o Deus frio e apático do pensamento grego clássico, é antes o Deus simpático, comprometido com a dor e o sofrimento humano. Jesus, o Deus-encarnado é a revelação máxima deste Deus.      

Ser conservador, ou tradicional não significa ser tradicionalista.  A. W. Tozer já disse certa vez que a tradição é a fé viva dos que já morreram, ao passo que o tradicionalismo é a fé morta dos que ainda vivem. O tradicionalismo é comparável a caucificação que ocorre em lagoas cristalinas, como em Bonito, MS, e Nobres no MT. O calcário presente na água se apega lentamente a estrutura dos objetos que se transformam sob a superfície do lago. Uma aliança logo é revestida de uma camada de pedra ficando irreconhecível, o mesmo ocorre com um cadarço, um talher, um prendedor de roupas, ou sapato. Os comerciantes locais costumam armar varais nas lagoas calcárias, para vender souvenires desta natureza. Segundo um guia me relatou em Bonito, por ocasião de uma viagem de férias, que fizemos em família, os Jacarés não se criam por ali. A vida morre lentamente, em meio ao longo processo de caucificação no lago. O tradicionalismo funciona de modo semelhante, foi Jesus quem condenou os acréscimos mortíferos da tradição desenvolvida por escribas e fariseus, os seus ensinos pervertiam a mensagem original da Torah, o seu legalismo sufocava a vida espiritual, anulando o sentido da lei, as tradições humanas por eles ensinadas pervertiam a pureza da revelação de Deus. A morte era consequência desta adulteração. Os fariseus eram hipócritas invalidavam a palavra de Deus por causa da sua tradição. O tradicionalismo farisaico é mortal.  

Ser conservador não significa ser contra inovação ou mudança. Um conservador jamais iria opor-se a mudanças benéficas para o indivíduo, a família, ou sociedade. O problema é que tais mudanças não ocorrem todos os dias. Nem sempre temos uma grande ideia. Não é toda hora que livros sagrados são escritos, ou que milagres acontecem. Na maioria das vezes quando mudamos, mudamos para pior, ou apenas reafirmamos antigos erros, em novas abordagens, mudanças cosméticas. Poderíamos dizer ainda que o progresso técnico e científico, não significa ou resulta em mudança ontológica. Somos os mesmos desde a antiguidade, embora hoje sejamos os mesmos com smartphones e wi-fi. Ainda somos os mesmos e vivemos como nossos pais.

Por que ser tradicional, ou conservador? Porque a tradição é a inovação que deu certo, resistiu ao implacável teste do tempo, superou todas as dificuldades teórico-práticas e que mesmo filtrada dos modismos, permaneceu útil, verdadeira e aplicável. Em suma, porque ela expressa o novo que se comprovou universal.

Foi este o entendimento expresso por Gamaliel, neto de Hilel, líder do Sinédrio, renomado teólogo em sua época, que de acordo com o Talmude, era raban (mestre em Israel) e que fora mentor no judaísmo do jovem Saulo de Tarso, o futuro Apóstolo cristão entre gentios. Coube a este mestre, uma palavra de sabedoria que livrou o Sinédrio de cometer uma grave injustiça contra o movimento de Jesus. Os apóstolos estavam pregando em nome de Cristo, ir contra o movimento cristão poderia ser uma luta contra Deus. Se o cristianismo fosse mero tumulto, ou heresia, logo seria dissipado, mas se fosse a verdade dos fatos, não poderia ser silenciado. Dois milênios se passaram e hoje o cristianismo é a maior expressão religiosa do mundo. A sabedoria Gamaliel, não poderia jamais ser refutada.


Que o conselho do velho mestre Gamaliel, continue sendo atentamente observado: O que é bom, justo e verdadeiro, procede de Deus, e não pode ser destruído pelo tempo, ou empenho humano.

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