REFLEXÃO - A GRANDE MIRAGEM. O risco das pretensões totalizantes.
A GRANDE MIRAGEM. O risco das
pretensões totalizantes.
A construção no ocidente de uma
proposta de estado laico, com possibilidade de convívio entre cosmovisões
conflitantes e ampla liberdade expressão é fruto das dolorosas lições
resultantes dos inúmeros conflitos deste período medieval e de início da
modernidade.
Por Manoel G. Delgado Júnior[1]
O conceito de teocracia cristã medieval
é derivado de uma tênue síntese da cosmovisão cristã[2] com o sistema imperial romano[3] e a sua consequência objetiva foi uma
estabilização de mil anos num império que sucumbia. O pretenso domínio sobre as
esferas da vida não se deu exclusivamente em bases cristãs, mas também pagãs. A
medida que o cristianismo buscava o domínio das esferas da vida no império,
sorrateiramente era, ele mesmo, dominado, reformulado e adequado até que
essencialmente fosse reduzido ao que seu antecessor se tornara: uma força
ideológica a serviço do império.
O cristianismo dominou a religião, mas
por meio da substituição do sacerdotalismo pagão, pelo sacerdotalismo cristão[4], pela adesão ao conceito de religião
oficial do Império, pela aceitação irrestrita das estruturas organizacionais
romanas que foram disponibilizadas para este domínio, e por fim, pelo uso da
força coercitiva do Estado impostas sobre as consciências como meio de
dominação religiosa. Os presbíteros-epíscopos, agora como sacerdotes
hierarquizados se tornaram gradualmente os ministros religiosos do império.
Conservaram-se os paramentos, os títulos, os privilégios e até mesmo as
dioceses do antigo sistema pagão.
A igreja dominou as ciências,
subordinando as várias disciplinas, à teologia mas, para a sistematização do
pensamento teológico valeu-se da filosofia grega em especial, dos sistemas
neoplatônico e aristotélico. Os principais paradigmas desta produção teológica
foram o agostinianismo[5] e o tomismo. Este processo não ocorreu
sem que houvessem protestos de mentes pensantes como as de Tertuliano, O pai da
teologia ocidental, que nos seus dias denunciou o que ele considerava uma
aliança perigosa entre Jerusalém e Atenas[6]. As universidades fruto destas sínteses,
nasceram com a proposta de harmonização da teologia com as demais ciências.[7]
O domínio cristão nas relações de
trabalho fundamentou-se nos conceitos de harmonia social, de dignidade humana,
e equidade. Tal perspectiva buscava trazer estabilidade social e econômica ao
império compreendendo os estamentos sociais como uma derivação da vontade de
Deus. Existem os que trabalham, os que governam, os que lutam, e os que oram. A
coesão social medieval derivou destas percepções.
O domínio cristão nas artes desenvolveu-se
a partir do mecenato da igreja. A arquitetura, pintura, escultura, o teatro e
as demais artes são agora financiadas pelo clero. Dos vitrais bizantinos as
catedrais góticas, dos teatros de rua aos estruturados corais gregorianos. O
mecenato da igreja estruturou a produção das mais diversas expressões
artísticas. O que não significa necessariamente que este processo transcorreu
sem protestos e dissensos, uma vez que, os artistas deixaram sinais de sua
insubordinação em suas produções.
A missão passou a ser vista sob a ótica
do império. O avanço da civilização e do evangelho se confundiram. A evangelização
e a conversão deixaram de ser uma prioridade, pois com o status de religião
oficial, o cristianismo passava a ter mais membros do que a sua capacidade
orgânica de discipulado. O resultado deste processo é amplamente conhecido.[8]
O que dizer sobre este período? Foi
inegável que a contribuição do pensamento cristão ao império trouxe conceitos
que eram estranhos ao mesmo e que modelaram positivamente a vida da sociedade.
Conceitos como dignidade humana, solidariedade, compaixão, e amor ao próximo
certamente tiveram influência positiva sobre a civilização ocidental e
humanizaram as feições carrancudas de um outrora império pagão.[9] Porém, a síntese desta
relação entre a Igreja e o Império estava longe de ser uma cultura cristã, ou
uma teocracia na terra. Pois os valores, crenças e ritos pagãos[10] ainda faziam parte deste sistema sendo
ocultados sobre o nome cristão.
As degenerações deste tipo de relação
foram evidentes para a igreja e a sua pretensão milenarista[11] foi rapidamente eclipsada pela realidade
das guerras étnicas, da inquisição, do declínio moral e espiritual da
cristandade. Tal força coercitiva sobre consciências e sociedades tende a gerar
um acúmulo de tensão social que no caso medieval resultaram numa explosão de
movimentos que se configuraram como contrapontos as pretensões totalizantes da
teocracia cristã.
O nosso objetivo no presente trabalho
não é o de desmerecer a sociedade ocidental, mas sim de reconhecer que esta
sociedade encontrou na democracia, e no modelo de laicidade, a sua mais adequada
expressão em face dos conflitos sociais e culturais que enfrentou ao longo de
sua rica história. Reconhecer também que o cristianismo teve uma importante
contribuição, por meio de valores morais, instituições e práticas humanizadoras
que tiveram influência positiva para a esta sociedade.
Os riscos do totalitarismo são
conhecidos, e precisam ser evitados. A verdade é que a ideia de uma única
cosmovisão controlando todas as esferas da vida e da sociedade é uma tentação
perigosa, para qualquer sistema de pensamento, seja ele cristão ou não. O
paganismo na antiguidade, e depois o cristianismo medieval não resistiram
historicamente a esta pretensão. As experiências comunistas, nazifascistas, tiveram
este elemento em comum.[12] O totalitarismo consiste na imposição de
uma cosmovisão sobre as outras, eliminando as ideias dissidentes. A antiga
lógica do sistema imperial romano, está presente em nosso imaginário mais do
que poderíamos supor.
Os adeptos das propostas totalizantes
acreditam que estão construindo verdadeiros oásis de coerência e perfeição na
terra, mas não passam de beduínos sedentos, enxergando miragens no deserto.
[1] Pastor Efetivo da Igreja Presbiteriana
de Lucas do Rio Verde no Mato Grosso, Professor de Teologia, e coordenador do
polo do IBAA de Lucas do Rio Verde. Bacharel e mestre em Teologia pela FTML-SP.
Doutorando em Ministério pelo Seminário Servo de Cristo-SP.
[2]
Weltanschauung – Visão de mundo. - O presente artigo tem por
objetivo advertir sobre os riscos de nutrirmos uma pretensão totalizante para a
sociedade. O monopólio de uma visão de mundo imposta sobre as demais.
Sobre a evolução do termo na filosofia e teologia ler: CARVALHO,
Guilherme V.R. & LEITE, Cláudio A.C , COSMOVISÃO CRISTÃ, Centro
Kuyper de Estudos Cristãos, BH.
[3] Poderíamos citar como terceiro elemento a noção de teocracia judaica,
tal como proposta no pentateuco. Mas para o desenvolvimento do artigo em
questão, não faremos esta análise.
[4] Estas ideias estão presentes no meu trabalho sobre o governo na igreja.
DELGADO Jr. Manoel G., O PRESBITERATO E O MODELO REPRESENTATIVO DE
GOVERNO. Obra não publicada.
[5] A visão de Agostiniana sobre os “Dois Reinos” expressa na obra a Cidade
de Deus contra os pagãos, não foi consistentemente adotada como modelo de
relação da Igreja com Estado. Esta ambiguidade pode ser observada na própria
biografia do teólogo de Hipona, que na qualidade de Bispo se valeu de um
dispositivo militar, para o enfrentamento da controvérsia Donatista. Os ecos de
tal incoerência se fizeram sentir na história da Igreja.
[6]
“Que tem a ver Atenas com Jerusalém? Ou a Academia com a Igreja? Ou
os hereges com os cristãos? A nossa doutrina vem do pórtico de Salomão, que nos
ensina a buscar o Senhor na simplicidade do coração. Que inventem, pois, se o
quiserem, um cristianismo de tipo estóico e dialético! Quanto a nós, não temos
necessidade de indagações depois da vinda de Cristo Jesus, nem de pesquisas
depois do Evangelho. Nós possuímos a fé e nada mais desejamos crer. Pois
começamos por crer que para além da fé nada existe que devamos crer.” -
TERTULIANO. De Praescriptione Haereticorum. c. 7. In: BOEHNER, Philotheus,
GILSON, Etienne. HISTÓRIA DA FILOSOFIA CRISTÃ: DESDE AS ORIGENS ATÉ NICOLAU DE
CUSA. 7a. ed. Trad. Raimundo Vier. Petrópolis: VOZES, 2000. p.138.
[7] Nem todo aspecto desta relação foi
negativo. Porém o processo de entrelaçamento entre Igreja, Estado Imperial e Cultura
Greco-Romana resultaram numa síntese que não pode ser confundida com o
cristianismo.
[8] BOSCH, David. Missão Transformadora.
Mudanças de Paradigma na História da Missão Pág.271-283
[9] KELLER, Timothy, IGREJA CENTRADA, São Paulo:Vida Nova. 2014. Pág.254/264.
- Sommerville reconhece esta contribuição do cristianismo para as instituições
ocidentais e vê nela uma espécie de “capital emprestado.”
[10] Sobre o impacto de Constantino na
História da Igreja vide. CLOUSE, PIERARD, YAMAUCHI. DOIS REINOS. A IGREJA E A
CULTURA AO LONGO DOS SÉCULOS. São Paulo: Cultura Cristã. 2003 Pág 85-107; GONZALES,
Justo. HISTÓRIA ILUSTRADA DO CRISTIANISMO. 2ª Edição Revisada. V. 1. Pág.121-163;
CAIRNS, Earle. O CRISTIANISMOS ATRAVÉS DOS SÉCULOS. São Paulo: Ed. Vida Nova. 1995
Pág. 99-101
[11] A visão escatológica postula que o milênio será o reino de Cristo na
Terra diretamente por uma intervenção sobrenatural (pré-milenismo) ou
indiretamente por meio do domínio cristão na sociedade (pós-milenismo). O
milenarismo foi muito presente no período medieval. Sobre o milenarismo e seus
desdobramentos históricos ler: COHN, Norman, NA SENDA DO MILÊNIO. MILENARISTAS
REVOLUCIONÁRIOS E ANARQUISTAS MÍSTICOS DA IDADE MÉDIA. Editorial Presença,
Lisboa; DELUMEAU, Jean Volume II: MIL ANOS DE FELICIDADE, Terramar,
Lisboa, 1997; ESCATOLOGIA E MILENARISMO NA HISTÓRIA DA IGREJA CRISTÃ, Edson
PEREIRA LOPES, REVISTA CIÊNCIAS DA RELIGIÃO – HISTÓRIA E SOCIEDADE v. 9 , n. 1
, 2011. Ed. Mackenzie.
[12] Op. cit., pp. 317-465 - DELUMEAU considera as utopias progressistas e
socialistas como formas de milenarismo secularizado.
Comentários
Postar um comentário