Seguidores

Postagens

Mostrar mais

CONTO - A TERRA SEM MAL. UMA NARRATIVA MITO-POÉTICA TUPI-GUARANI.

A Terra Sem Mal

Um conto de Manoel Gonçalves Delgado Jr., baseado na tradição Tupi-Guarani, com inspiração em Curt Nimuendajú, Pierre Clastres e uso de licença poética.

[...]

"No princípio, havia a Terra Sem Mal — Yvy Marã Ey — onde os primeiros humanos viviam em comunhão com Nhanderu, o Criador.

Tudo ali era equilíbrio: os rios eram doces, os frutos cresciam sem esforço, os corpos não conheciam dor, e a morte não havia ainda atravessado o caminho dos homens.

O casal primordial, moldado do sopro e do verbo, chamava-se Nhamandu e Sypave. Eram os primeiros cantores do mundo. Cantavam a criação, e seus cantos — chamados ayvu rapyta — mantinham a ordem das coisas. O mundo vivia no compasso de suas vozes.

Mas houve um esquecimento.

Talvez por orgulho. Talvez por medo de algo que ainda não havia acontecido. Talvez por desejo de segurar o tempo, como quem tenta prender água entre os dedos.

Eles cessaram de cantar.

E quando o canto cessou, o mundo mudou.

O solo endureceu, os frutos rarearam, os rios tornaram-se pesados.

O tempo, até então circular e leve, começou a marcar idades.

E a morte entrou pelo silêncio.


Nhanderu, o Criador, não os puniu.

Mas se afastou.


E, com Seu afastamento, a Terra Sem Mal desvaneceu aos olhos deles.

Eles permaneceram no mundo — mas não era mais o mesmo mundo.

Ou talvez não fossem mais os mesmos.


Tomados pela vergonha, cobriram seus rostos com máscaras de palavras esquecidas, e passaram a viver como sombras do que haviam sido.

Desde então, quando os jovens Guarani olham sua imagem nas águas do rio, não veem mais o rosto original dos filhos do Criador — apenas o reflexo opaco das máscaras herdadas.


E assim, seus descendentes tornaram-se um povo peregrino.

Caminham não por perderem o rumo, mas porque sabem que este mundo não é sua morada definitiva.

Marcham sempre em direção ao Oriente,

porque foi de lá que veio a luz,

e para lá retornará o caminho.


Ao longo das gerações, alguns ouviram fragmentos do canto perdido.

Outros dançaram como se seus pés pudessem redesenhar a rota esquecida.


Mas ninguém mais viu a Terra Sem Mal como eles a viram.


Dizem que, quando vieram os homens brancos de além-mar, nossos pais imaginaram que fossem moradores da Terra Sem Mal.

Quem sabe, irmãos que haviam reencontrado o caminho?


Mas eles tomaram as terras, rasgaram os cantos, e profanaram o passo.

Não eram melhores. Também estavam perdidos.


Hoje, ainda há anciãos que sussurram sob a lua:

“Quando as máscaras caírem, quando o canto for refeito com todos os seus versos, a Terra Sem Mal surgirá novamente diante de nós como um rosto antigo reencontrado.”


E os jovens perguntam, com olhos que ainda buscam:

“Terra Sem Mal… será que saberei onde encontrá-la?

Qual o caminho?

Quem poderá nos dizer por onde ela foi?”

---

Este conto é uma recriação literária baseada nos mitos Tupi-Guarani da Yvy Marã Ey, conforme registrados por Curt Nimuendajú e interpretados por Pierre Clastres. Utiliza-se de licença poética e simbólica para compor uma teodiceia ameríndia em diálogo com temas universais da tradição judaico-cristã e da antropologia mitológica.

© 2025 – Manoel Gonçalves Delgado Jr.



Comentários

Marcadores

Mostrar mais

Veja ainda...

ESBOÇO - A QUEDA DA MURALHA DE JERICÓ.

ESBOÇO - ICABODE - PORQUE A GLÓRIA DE DEUS SE FOI.

ESBOÇO - ISAÍAS 42.1-4. CANA QUEBRADA E PAVIO FUMEGANTE.