QUESTÕES TEOLÓGICAS - PERGUNTAS SOBRE O CONTEXTO SÓCIO-CULTURAL DAS ESCRITURAS.
QUESTÕES TEOLÓGICAS - PERGUNTAS SOBRE O CONTEXTO SÓCIO-CULTURAL DAS ESCRITURAS.
Abaixo estão as 13 perguntas
desenvolvidas a partir de um questionário para pós-graduação de uma instituição
teológica, transcritas na íntegra com as respectivas respostas ampliadas por
reflexões teológicas, experiências pessoais e contribuições patrísticas e
reformadas.
1. Qual foi o papel do Império
Persa na formação do judaísmo pós-exílio, incluindo a possível influência persa
no desenvolvimento da crença em Satanás e os demônios, como sugerido pela
comparação entre 2 Samuel 24:1 e 1 Crônicas 21:1, onde o primeiro atribui a
Deus a tentação de Davi e o segundo a Satanás?
O retorno dos judeus sob Ciro
(Ed 1) não apenas restaurou a vida cultual em Jerusalém, mas possibilitou o
florescimento de ideias escatológicas, angelológicas e demonológicas mais
sistematizadas. A figura de Satanás, como adversário independente de Deus,
aparece de forma explícita em 1Cr 21:1.
Nota adicional: No entanto,
convém lembrar que o livro de Jó, que alguns atribuem ao período mosaico ou à
época da monarquia unida, já apresenta Satanás em diálogo direto com Deus (Jó
1–2), demonstrando sua função de acusador. Além disso, em Gênesis 3, embora
Satanás não seja nomeado diretamente, a serpente é compreendida na tradição
judaico-cristã como manifestação do adversário. E em Gênesis 3:24, temos os
querubins com espada flamejante guardando o Éden — outra menção clara da
realidade angelical. Portanto, dizer que 1Cr 21:1 é a "primeira"
aparição de Satanás exige adotar uma perspectiva crítica de composição textual
(como a hipótese documental), o que contraria a visão tradicional da
integridade e unidade do texto bíblico.
Complemento reformado: Para os
teólogos reformados, Deus é causa primária de todas as coisas. Contudo, Ele age
por meios secundários, que conduzem aos Seus fins soberanos. Assim, os relatos
de 2Sm 24:1 e 1Cr 21:1 não se contradizem, mas se complementam: um revela a
causa última (Deus), o outro a instrumentalidade (Satanás).
Desafio teológico: Por que os
estudiosos geralmente assumem que os judeus absorveram ideias persas (como
dualismo ou angelologia) e não o inverso? Como observa John Walton, “a
interação entre culturas não é uma via de mão única”. O monoteísmo ético judaico,
centrado na justiça e santidade de Deus, pode ter influenciado profundamente as
noções morais e cósmicas dos persas. A ausência de documentação direta talvez
explique o silêncio histórico, mas não invalida a hipótese de influência
judaica — especialmente considerando que o judaísmo, com seu rigor ético e
teológico, contrastava radicalmente com os mitos sincréticos ao redor.
Essa assimetria na análise
histórica revela, muitas vezes, um viés eurocêntrico ou pós-iluminista que
subestima a capacidade transformadora das religiões minoritárias e o dinamismo
das interações culturais.
2. Como a cultura grega
influenciou a narrativa do Novo Testamento, considerando as semelhanças entre
os conceitos filosóficos gregos e os ensinamentos cristãos, como a ideia de
logos (razão universal) em Heráclito e João 1:1, a noção de alma imortal em Platão
e a ressurreição em 1 Coríntios 15, a ênfase na ética e na moralidade em
Aristóteles e Jesus, e a concepção de um lugar de punição eterna, como o
Tártaro nos mitos gregos e o inferno no cristianismo, bem como a ideia de um
paraíso após a morte, como os Campos Elísios na mitologia grega e o céu no
cristianismo?
A cultura grega permeia o
mundo neotestamentário. João usa o termo Logos (Jo 1:1) ressignificando o
conceito filosófico. Paulo, em 1Co 15, discute a ressurreição em termos que
interagem com a filosofia grega, mas sem sincretismo: enquanto Platão via o corpo
como prisão da alma, Paulo proclama a redenção do corpo. Jesus ensina ética com
sabedoria superior à de Aristóteles — fundamentada no amor e no Reino de Deus
(Mt 5–7). O “Tártaro” (2Pe 2:4) é um termo grego, mas inserido em uma teologia
escatológica judaico-cristã.
Aprofundamento acadêmico:
Charles H. Dodd, em A Interpretação do Quarto Evangelho (Editora Teológica,
2003), destaca a amplitude e complexidade do conceito no cristianismo
primitivo, especialmente entre o final do primeiro e o segundo século. Ele
traça paralelos com o pensamento de Fílon de Alexandria — que via o Logos como
mediador entre Deus e o mundo —, com a literatura hermética, e com o judaísmo
rabínico. Assim, o Logos de João não é meramente um empréstimo grego, mas uma
ressignificação teológica rica e multifacetada, profundamente enraizada tanto
no judaísmo quanto na filosofia helênica.
3. O massacre dos cananeus,
ordenado por Deus no livro de Josué, é considerado um ato cruel e brutal por
muitos estudiosos e leitores. Como podemos entender esse evento no contexto da
história e da teologia do Antigo Testamento, e quais são as implicações éticas
e morais desse evento para a compreensão da Bíblia hoje?
Deve ser interpretado como
juízo de Deus num contexto de guerra santa (herem). Não se trata de
genocídio étnico, mas de destruição de uma cultura idólatra profundamente
corrompida (cf. Lv 18; Dt 9:4-5). Implica a seriedade do pecado e a santidade
de Deus. Impõe-nos o desafio ético de ler o AT com lentes cristocêntricas e
históricas.
Aprofundamento autoral: Em
artigo próprio, apresentei 11 distinções entre o conceito moderno de genocídio
e o "herem" israelita. Entre os pontos destacados, ressalta-se que o
herem não tinha motivação étnica ou supremacista, mas era um ato teológico e
judicial, dentro de uma revelação progressiva de Deus. Algumas práticas do
Antigo Testamento devem ser compreendidas à luz do seu estágio revelacional,
que culmina em Cristo. A plenitude da revelação traz também a plenitude da
ética, centrada na cruz (Hb 1:1-3; Mt 5:17).
4. Como a conquista romana da
Judeia afetou a vida política e social dos judeus, incluindo exemplos como a
imposição de impostos romanos, a construção de estradas e aquedutos, a presença
de guarnições romanas em cidades como Jerusalém e Cesareia, e a influência da
cultura romana na arquitetura, arte e literatura judaicas?
Impostos, legiões romanas e
obras públicas impactaram fortemente o cotidiano judaico (Mt 22:21; At
23:23-24). O Império também trouxe estabilidade e mobilidade que favoreceram a
expansão do evangelho (At 1:8; Rm 15:19). Contudo, o conflito entre a expectativa
messiânica e o domínio romano resultou em tensões escatológicas e revoltas
(66-70 d.C.).
Quando estive no ano passado
em Portugal e Espanha, pude ver pessoalmente as grandes obras do período
romano. Aquedutos, muralhas e até mesmo antigas vias testemunham o quanto o
Império Romano é uma realidade ainda presente na vida dos europeus. Esses vestígios
históricos lançam um pequeno vislumbre do que foi o significado do Império
Romano no antigo mundo mediterrâneo — uma estrutura de poder, cultura e
engenharia que moldou o ambiente em que surgiu o cristianismo.
5. Quais foram as principais
características da sociedade judaica no tempo de Jesus, considerando a
discussão da Nova Perspectiva sobre Paulo (NPP) sobre o judaísmo do Segundo
Templo como uma religião mais diversificada e complexa do que a visão tradicional,
que o apresenta como um sistema legalista e exclusivista, e como essa
perspectiva afeta a compreensão da teologia e da prática de Jesus e dos
primeiros cristãos?
A Nova Perspectiva de Paulo
(NPP), impulsionada por autores como E. P. Sanders, James D. G. Dunn e N. T.
Wright, emergiu como resposta à leitura reformada tradicional da teologia
paulina. Sanders, ao estudar o judaísmo do Segundo Templo, argumentou que esse
judaísmo era fundamentado na graça e na aliança, não em legalismo meritório,
cunhando o termo "nomismo da aliança". Segundo os proponentes da NPP,
a ênfase reformada na justificação pela fé, especialmente em Romanos, teria
sido historicamente moldada pela controvérsia de Lutero com o catolicismo
romano — e não necessariamente pelo contexto paulino original.
Antes de julgarmos esse debate
com base em predisposições teológicas, devemos analisar com critério exegético
e histórico o contexto das cartas paulinas. Isso implica observar o pano de
fundo judaico do Segundo Templo, a situação das comunidades gentílicas e as
disputas de identidade que Paulo enfrentava.
Por outro lado, teólogos
reformados de renome, como John Piper e Peter Stuhlmacher, ofereceram respostas
acadêmicas robustas à NPP. Ambos reafirmaram, com base em pesquisas bíblicas e
históricas, a centralidade da doutrina da justificação pela fé tanto no livro
de Romanos quanto na teologia evangélica. Piper, especialmente, sublinha que a
justificação é não apenas um tema importante, mas o cerne da mensagem paulina
sobre o evangelho (cf. Rm 3–5).
6. Quais são as principais
diferenças entre a perspectiva tradicional da aliança e a perspectiva da Nova
Perspectiva sobre Paulo (NPP) em relação à teologia da salvação e da
justificação?
A teologia reformada
tradicional entende justificação como ato legal de Deus que declara o pecador
justo pela fé. A NPP vê a justificação mais como identificação com o povo da
aliança, com forte ênfase em inclusão étnica e comunhão no Corpo de Cristo (Gl
3:28; Rm 3:29-30).
Complementando essa análise, o
pesquisador Nathan Busenitz realizou um estudo detalhado das fontes do Novo
Testamento e dos escritos patrísticos, demonstrando que a doutrina da
justificação pela fé já era uma convicção presente na igreja muito antes da Reforma
Protestante. Sua pesquisa, apresentada na obra Muito Antes de Lutero,
evidencia que essa doutrina não foi uma inovação de Lutero, mas fazia parte do
substrato do cristianismo histórico, com raízes claras nos escritos paulinos e
testemunhos da Igreja Primitiva.
Busenitz mostra como Lutero,
em meio ao sofrimento e tentativas de autopunição por seus pecados, encontrou
libertação ao redescobrir a verdade bíblica da justificação pela fé. Mas o
autor demonstra, com rigor acadêmico, que essa verdade já era crida e proclamada
muito antes do século XVI, mesmo durante os anos considerados
"sombrios" da Idade Média. Busenitz é professor no The Master’s
Seminary e colaborador do blog Preacher & Preaching.
7. Qual é a relação entre o
Código de Hamurabi e a Lei de Moisés, considerando as semelhanças e diferenças
entre esses dois conjuntos de leis, e como isso afeta a compreensão da
inspiração divina da Bíblia, especialmente em casos em que a Lei de Moisés parece
ter sido influenciada por códigos legais anteriores, como o Código de Hamurabi?
Há paralelos formais (lex
talionis, por exemplo), mas diferenças profundas. A Lei de Moisés é
teocêntrica, redentiva e relacional, com implicações morais que superam o mero
ordenamento social. Unger observa que as semelhanças confirmam o uso cultural
das leis, mas não negam a inspiração divina.
Esse estudo dos tratados e
leis aponta, de fato, para uma influência semita mais ampla no pensamento
jurídico do Antigo Oriente Médio, inclusive no próprio pensamento judaico. No
entanto, o elemento de originalidade da Lei de Moisés está fortemente presente.
Conhecer esses documentos antigos, como o Código de Hamurabi, amplia a
compreensão de ações dos patriarcas e demais personagens bíblicos, mesmo quando
suas atitudes não encontram fundamentação direta nas leis da Aliança. Esses
registros ajudam a contextualizar os relatos bíblicos, sem negar sua inspiração
e singularidade. Há paralelos formais (lex talionis, por exemplo), mas
diferenças profundas. A Lei de Moisés é teocêntrica, redentiva e relacional,
com implicações morais que superam o mero ordenamento social. Unger observa que
as semelhanças confirmam o uso cultural das leis, mas não negam a inspiração
divina.
8. Qual é o significado e o
contexto da lei em Deuteronômio 22:28-29, que determina que uma mulher não
casada que é estuprada deve se casar com o estuprador, e quais são as
implicações éticas e sociais dessa lei?
O texto deve ser lido à luz do
contexto antigo, onde o dote e a virgindade tinham implicações econômicas e
sociais sérias. A imposição do casamento visava proteger a vítima, mas não
legitima o abuso. A hermenêutica contemporânea destaca o princípio de justiça e
proteção da mulher (cf. Ex 22:16-17), não a letra da lei como normativa.
9. Como a escatologia judaica
influenciou a teologia do Novo Testamento, considerando elementos como a
expectativa messiânica, a ressurreição dos mortos, o juízo final e a
restauração de Israel, e como esses conceitos foram reinterpretados e aplicados
no contexto do cristianismo primitivo, levando a uma escatologia que integra
elementos do Antigo e do Novo Testamento?
Elementos como a ressurreição
(Dn 12:2), o juízo final e a restauração de Israel (Ez 37) são reinterpretados
em Cristo. Jesus é o Messias que inaugura o Reino (Lc 4:18-21). A escatologia
cristã é uma continuação transformada da esperança judaica.
10. Quais são as principais
características e implicações dos manuscritos do Mar Morto para a compreensão
do judaísmo e do cristianismo antigos?
Tive o privilégio de estudar
no Moriah International Center, onde pude assistir a vídeo-aulas e interagir
diretamente com o Dr. Adolfo Roitman, curador dos Manuscritos do Mar Morto.
Essa experiência proporcionou não apenas uma imersão acadêmica, mas também
espiritual no contexto do judaísmo do Segundo Templo. Diferente do que muitos
céticos alardeavam, esses manuscritos trouxeram sólida confirmação da
veracidade dos textos bíblicos. Além disso, proporcionaram uma compreensão mais
profunda dos essênios, um dos grupos religiosos do judaísmo do primeiro século.
Os Manuscritos do Mar Morto
revelam uma diversidade teológica e apocalíptica no judaísmo da época e ajudam
a contextualizar o surgimento do cristianismo primitivo, confirmando o pano de
fundo histórico e religioso das Escrituras do Novo Testamento.
11. Qual é a natureza do Reino
de Deus anunciado por Jesus, e como ele difere do Reino descrito em Daniel 7,
considerando a expectativa judaica de um Messias que libertaria Israel do
domínio romano e estabeleceria um reino político, e como Jesus reinterpreta
essa expectativa em termos de um reino espiritual e escatológico, e por que
João Batista, que havia anunciado Jesus como o Messias, mandou perguntar se ele
era o "que havia de vir" ou se esperavam outro, sugerindo uma
possível dúvida ou confusão sobre a identidade e a missão de Jesus?
Daniel 7 apresenta um Reino
escatológico universal. Jesus reinterpreta essa visão em termos espirituais (Mt
13:31-33). João Batista esperava um Messias juízo-imediato (Mt 11:3). Jesus
revela um Reino inaugurado, mas ainda não consumado — o “já e ainda não”.
Essa tensão foi posteriormente
compreendida pelos exegetas como uma fusão de horizontes: aquilo que os antigos
viam como um evento único e imediato (como o juízo, a restauração de Israel e o
Reino de Deus), o Novo Testamento apresenta como acontecimentos em etapas,
separados por uma grande temporalidade — a primeira e a segunda vinda de
Cristo. Essa nova percepção revela a progressividade da revelação, um princípio
teológico essencial na compreensão da Escritura.
Como disse Agostinho: “O Novo
está oculto no Velho, e o Velho está manifesto no Novo”. Essa unidade
progressiva da revelação mostra que os propósitos de Deus são desdobrados ao
longo do tempo, revelando com crescente clareza a obra redentora de Cristo.
12. Qual é o significado e a
implicação da declaração de Jesus de que ele não sabia a hora da sua segunda
vinda (Marcos 13:32), considerando a aparente limitação do conhecimento de
Jesus e suas implicações para a compreensão da sua natureza divina e humana?
A limitação de conhecimento é
uma expressão da kenosis (Fp 2:6-8). Jesus, em sua humanidade, submeteu-se ao
Pai, sem que isso implique negação de sua divindade. A teologia calcedoniana
sustenta que Jesus é plenamente Deus e plenamente homem, em uma só pessoa.
O Concílio de Calcedônia (451
d.C.) declarou:
“Seguimos os santos Padres e
unanimemente ensinamos que se deve confessar um só e mesmo Filho, nosso Senhor
Jesus Cristo: o mesmo perfeito em divindade e perfeito em humanidade,
verdadeiro Deus e verdadeiro homem [...] reconhecido em duas naturezas, sem confusão,
sem mudança, sem divisão, sem separação.”
Essa declaração afirma que a
encarnação não implicou em limitação da divindade, mas em autoesvaziamento
voluntário no plano redentivo.
13. Qual é a natureza da morte
de Jesus? Se Jesus morreu como homem, isso implica que a sua natureza divina
foi separada da sua natureza humana no momento da morte? Se Jesus morreu como
Deus, isso implica que a sua natureza divina foi capaz de sofrer e morrer.
Jesus morreu como homem (Lc
23:46), mas sua morte tem valor redentivo eterno por sua natureza divina. A
união hipostática ensina que, embora a divindade não morra, a pessoa do Filho,
que é divina e humana, morreu. Isso torna a cruz o ápice da revelação de Deus
(Hb 1:1-3; 2Co 5:21).
O Credo de Atanásio reforça
esse entendimento:
“O Filho é Deus e homem: Deus
da substância do Pai, gerado antes dos séculos, e homem da substância da mãe,
nascido no tempo. Perfeito Deus, perfeito homem [...] Um, não por conversão da
divindade em carne, mas pela assunção da humanidade em Deus.”
Essa formulação patrística
confirma a ortodoxia cristã de que Cristo, mesmo em sua morte, permanece a
segunda pessoa da Trindade — plena em sua divindade e verdadeira em sua
humanidade.
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