REFLEXÃO - A RELIGIÃO SEM PODER.

A RELIGIÃO SEM PODER.
Pouca gente percebe, mas estamos todos inseridos num debate de proporções homéricas sobre cessação e contemporaneidade. Não me refiro aos dons-carismas, ofícios extraordinários da era neo-testamentária, ou ainda ao movimento contemporâneo de “novos apóstolos”, ou a clássica discussão sobre a sucessão apostólica defendida por Roma, e pela Hight Church Anglicana.
Embora estes temas ainda tenham relevância específica, considero que outro embate de natureza ainda mais grave e urgente ocorre sem a percepção devida daqueles que estão envolvidos em suas fileiras.
As proporções são homéricas, entre outras razões, porque a sua gênese remonta a antiguidade, no período clássico, e os seus pressupostos derivam de uma antiga forma de leitura e interpretação dos escritos de Homero.
Por meio desta hermenêutica, os antigos filósofos puseram-se a reler os escritos sobre os deuses não mais encontrando neles uma crença sobrenatural a ser professada, mas sim, uma lição ética, um mero pano de fundo moral a partir das narrativas religiosas.
Os deuses e o Olimpo lentamente desapareceram, o homem era afirmado, através das metáforas religiosas. Era o nascedouro do humanismo secular. O Homem é a medida de todas as coisas, diria um pensador grego (Protágoras). Não é sem razão que Sócrates foi acusado de ateísmo, embora ele mesmo não viesse a ser um ateu no sentido corrente, e atual do termo.
Não demorou para que este método fosse estendido aos textos sagrados de outros povos, e na carona do helenismo, em Alexandria, por meio de Filo, um mestre judeu, Homero deu lugar a Moisés. Era o início da escola alegórica de leitura bíblica. Quais as consequências deste fato? Nascia uma longa tradição de (re)leituras das sagradas escrituras, destituindo-as do seu sentido original.
Em Alexandria, uma escola de interpretação cristã passou a aplicar e aprimorar este método, estendendo-o ao novo testamento. Para os mestres alexandrinos o sentido literal do texto não importava, as passagens difíceis deveriam ser harmonizadas ao pensamento do tempo corrente, as passagens obscuras deveriam ser reinterpretadas a luz do moralmente aceitável, o sentido alegórico deveria sobrepor-se ao sentido histórico-gramatical do texto, e se o interprete não considera-se alguma afirmação como “digna de Deus” (Platão) esta deveria ser banida para debaixo do tapete da exegese Alexandrina. O caráter sobrenatural destes escritos deixava de ser considerado, o espirito grego predominava na leitura e interpretação. Não é sem razão, que os antigos Saduceus não acreditavam em Anjos, milagres e ressurreição.
Encontramos aqui a origem dos inúmeros esforços de tradução, adequação, ressignificação da revelação divina, do longo processo de secularização e desencantamento do mundo, e das inúmeras tentativas de domesticação do sagrado. Por meio da releitura dos textos inspirados, era possível uma ressignificação de palavras e expressões religiosas num processo corretamente denunciado como “transubstanciação da Fé” (Brunner).
Esta postura, resultou no que poderíamos denominar de religião sem poder. Nesta abordagem mantem-se as palavras, formas e ritos da genuína experiência religiosa, porém, deixa-se crer no poder de Deus, e na sua operação no mundo. Desde os primórdios, a religião sem poder disputa o direito de primogenitura com a genuína expressão religiosa.
A religião sem poder é grave, pois ela reduz a pregação bíblica à uma série de metáforas sagradas esvaziadas de sentido transcendente. Esta abordagem não passa de humanismo secular transvestido de religião. A religião é reduzida a antropologia (Feuerbach). 
A religião sem poder promove uma releitura das escrituras, e também da realidade. Pois, para os adeptos desta religião, o universo não é mais percebido como a criação de Deus, e a história não é mais percebida como o cenário da divina providência, mas única e tão somente, como uma natureza, desprovida de sentido, regida pelas leis do acaso, e da necessidade, onde a moral repousa no frágil e provisório fundamento humano.
A religião sem poder, baniu Deus da vida cotidiana. Deus para estes religiosos, pode até ser admitido como sobrenaturalmente presente num passado remoto, ou num futuro escatológico, mas jamais será encontrado no ordinário da vida, onde os homens vivem e diariamente tomam as suas decisões.
A questão posta sobre cessacionismo e continuísmo em nosso tempo, não é mais aquele decorrente dos antigos debates sobre o cânon, os dons, e os ofícios extraordinários, mas sim sobre a contemporaneidade ou não de Deus.
Ou Deus é o Senhor presente e eterno, soberano de sua criação, ou o mundo é apenas um cenário desolado desprovido de significado.
Ou Deus existe, como salvador tal como revelado na encarnação, morte e ressurreição de Jesus Cristo ou, ainda estamos em nossos pecados, vivendo a deriva neste mundo, desprovidos de transcendência e esperança.

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