PERGUNTE AO PASTOR - 01. GENOCÍDIO NA BÍBLIA?
PERGUNTE AO PASTOR. (01) Genocídio na Bíblia?
Por Manoel Gonçalves Delgado Júnior.
Pergunte ao Pastor foi um projeto desenvolvido, quando pastoreava jovens e adolescentes em Lucas do Rio Verde. o resultado foi tão bom que decidi criar esta coluna com perguntas e respostas teológicas com temas difíceis nas escrituras e/ou questões do momento. Sempre respondidas à luz da revelação das escrituras, da doutrina e da pesquisa academica. Aqui temos o primeiro programa idealizado sobre a ordem divina de juízo contra os cananeus. Este tema se tornou ainda mais relevante em nossos dias porque recentemente um livro sobre esta temática, foi publicado no Brasil. Espero que este pequeno esforço seja útil.
PERGUNTA. O velho testamento ensina e/ou legitima o genocídio? Como compreender as ações do antigo Israel, dizimando os povos Cananeus após as vitórias em guerras? Por que as propriedades, construções, mulheres, crianças, e animais deveriam ser eliminadas de maneira tão sumária? Isto não contradiz a ética revelada no evangelho de Cristo, e o senso geral de dignidade humana e justiça?
RESPOSTA.
Este é um dos temas mais espinhosos e difíceis do Antigo Testamento e penso eu,
de toda a Escritura Sagrada. Muitos interpretes fugiram desta questão adotando
uma leitura alegórica e simbólica da bíblia. É importante em primeiro lugar,
definirmos os conceitos e termos aqui empregados. O termo genocídio é de 1944 e
foi cunhado Raphael Lemkim (1900-1959), um advogado judeu polonês, para
descrever os horrores do regime Nazista durante a Segunda Grande Guerra. De
acordo com a Holocaust Encyclopedia: Lemkin
definiu o genocídio como "um plano coordenado, com ações de vários tipos,
que objetiva à destruição dos alicerces fundamentais da vida de grupos
nacionais com o objetivo de aniquilá-los".[1]Este termo, foi utilizado, no famoso julgamento do
tribunal internacional de Nuremberg para descrever os crimes praticados durante
a guerra, e foi tema da primeira
convenção das Nações Unidas no ano de 1948, nesta convenção foi redigida
importante documento do direito internacional, que possui como signatários 179
países.[2] Neste
sentido, falar de genocídio na antiguidade ou no mundo bíblico seria anacronismo[3]. Porém, e uma vez
estabelecido o conceito de genocídio como uma tipologia para análise histórica,
poder-se-iam falar de genocídios na antiguidade. A luz desta explanação
introdutória, podemos afirmar que na perspectiva teológica o genocídio é um
crime hediondo e a sua prática, é repudiada pelas escrituras sagradas em seu ensino
geral e consistente, e até onde tenho conhecimento, nenhum teólogo cristão,
ou judeu de expressão, defendeu a sua prática. O problema então persiste. Como
compreender a ordem para o extermínio dos povos cananeus no contexto da
conquista da Terra? Em primeiro lugar, a ação dos Israelitas segundo as
escrituras, era uma ação instrumentalizada de juízo divino. Em sentido
absoluto, somente Deus pode exercer juízo e justiça na terra, e por esta razão,
nenhuma nação ou indivíduo pode, por si mesma, tirar a vida, de quem
quer que seja, ou determinar o curso de sua duração. A ética do mandato social
procedente da ordem criacional, a lei moral expressa no decálogo, e a ética do
Reino de Deus revelados no sermão do Monte, claramente evidenciam o valor da
vida (humana e de animais), e proíbem o uso da força, para fins particulares e
ilícitos. Porém, há que se reconhecer que para fins de ordenamento social, e de
aplicação da justiça neste mundo decaído, Deus concede ao Estado, como seu
ministro, o uso legitimado da força. Também podemos afirmar, a partir da
leitura da Bíblia, que o próprio Deus pode exercer juízo diretamente,
uma vez que detêm o poder absoluto sobre a vida e a morte, e pode realizar
governo e justiça sobre a sua criação.
No caso singular da antiga Teocracia de Israel[4], por meio de uma ordem
direta dada pelo Senhor, conforme o registro bíblico, este povo, foi
instrumento histórico e autorizado do juízo de Deus sobre determinados povos e
nações. Estas ações punitivas tiveram algumas especificidades que evidenciavam
o seu caráter extraordinário, e desabonam qualquer tentativa de
perpetuação, ou legitimação “a posteriore” por parte de qualquer outro
povo, indivíduo, ou nação, incluso a própria nação de Israel em circunstâncias
normais. Quais os elementos teológicos e históricos que distinguem a ordem do
juízo de Deus contra os povos antigos, do genocídio como o tipificado em seu
sentido atual? Apresentarei uma breve relação: 1- A existência de uma ordem
direta sobrenaturalmente comunicada por Deus. 2- Ações hediondas e criminosas[5] cometidas pelos
destinatários do juízo. 3- Inferioridade bélica, e numérica por parte do
instrumento escolhido, para o Juízo. 4- Eventos sobrenaturais e fantásticos,
evidenciando a ação divina. 5- A singularidade histórico-redentiva do Antigo
Israel como povo escolhido. 6- O tratamento análogo dado aos Israelitas, quando
estes pecavam gravemente contra o Senhor. 7- A progressividade da
revelação divina e o desenvolvimento da ética bíblica. 8-A desobediência
parcial, ou total das ordenanças de juízo. 9- A possibilidade de
hipérbole e/ou retórica militar.[6] 10-A existência de práticas semelhantes entre outras
nações na antiguidade, atenuadas na ordenança divina.[7] 11- O cumprimento
histórico do propósito redentor de favorecer todos os povos da terra, por meio
do messias prometido e esperado. O genocídio envolve um plano deliberado e
contrário aos princípios legais, de que pelo uso da força, seja promovido o
extermínio de grupo social ou étnico.[8] Um ato de perseguição e
extermínio indiscriminado de inocentes. Esta ação de caráter hediondo, tem
total rejeição e repúdio por parte de cristãos e judeus, e não encontra
legitimação na tradição judaico-cristã. Contudo, apesar de todas as
considerações e distinções acima mencionadas, é necessário reconhecer que a
interpretação destas passagens de juízo no AT são de difícil solução e que a
leitura das mesmas desafia a nossa noção usual de justiça, revelando a
profundidade do pecado humano e de suas consequências, em contraste e oposição
ao Deus santo, justo e soberano revelado nas sagradas escrituras. A leitura
destas passagens ressalta também, o valor da graça e do favor divino, revelados
no Evangelho de Jesus, que por meio de sua obra vicária, nos livra da Ira e do
juízo que há de vir contra toda impiedade e injustiça dos homens. A teodiceia[9] mais adequada para este
problema é a própria revelação da Cruz, que apresenta o escândalo e loucura do
sacrifício do Filho de Deus em favor de pecadores indignos. Na cruz de Cristo,
encontramos a expiação de todo pecado e vislumbramos as dimensões do pecado
humano. Podemos finalizar este breve artigo, dizendo que onde os valores do
evangelho são cultivados, a justiça e a paz se manifestam, e os povos vivem com
dignidade e harmonia.
GENOCÍDIO |
HÉREN DE ANÁTEMA ISRAELITA |
Deliberação humana. |
Juízo divino instrumentalizado. |
Superioridade bélica. |
Inferioridade bélica e numérica. |
Perseguição de inocentes por ódio racial. |
Ações hediondas e ofensivas resultando no juízo. |
Uso dos meios naturais. |
Eventos
sobrenaturais e fantásticos. |
Fatos comprovados e documentados. |
Possibilidade de hipérbole, ou retórica militar. |
Prática rejeitada por leis internacionais. |
Expediente com paralelos na antiguidade. |
Agride a mentalidade contemporânea. |
Em conformidade com a mentalidade da época. |
Prática rejeitada pelo ensino geral da Bíblia. |
Ação singular sem precedentes para o futuro. |
Hediondo a partir da revelação de Deus em Jesus. |
Revela compreensão limitada e parcial de Deus. |
Holocaust
Encyclopedia, O que é genocídio?, https://encyclopedia.ushmm.org/content/pt-br/article/what-is-genocide Acessado em
12/06/2019
Revista
Mundo Estranho,Os 10 maiores genocídios da história. https://super.abril.com.br/mundo-estranho/os-10-maiores-genocidios-da-historia/ Acessado em
12/06/2019
Portal
das Nações Unidas Brasil, Ameaça de genocídio continua uma realidade nos dias
de hoje, alerta ONU. ,https://nacoesunidas.org/ameaca-de-genocidio-continua-uma-realidade-nos-dias-de-hoje-alerta-onu/ Acessado em
12/06/2019
KOUKL, Greg. Os Cananeus: genocídio ou julgamento? https://www.napec.org/traducoes/os-cananeus-genocidio-ou-julgamento/ Acessado em 13/06/2019
ARCHER JR., Gleason L., Merece confiança o Antigo Testamento?, Ed. Vida Nova. São Paulo, SP. 2008
BETTENCOURT,
Estevão. Para entender o Antigo Testamento. Ed. Santuário Aparecida São Paulo,
SP.7ª Edição. 1990. DE VAUX, Roland. Instituições de Israel no Antigo
Testamento. São Paulo, SP. Ed. Vida Nova. 2004
COPAN,
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(Grand Rapids: Baker, 2011), p. 171, 176-178, 181
DILLARD, Raymond B.
& LONGMAN III, Tremper, Introdução ao Antigo Testamento. Ed. Vida Nova. São
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HOFF, Paul. Os
livros históricos. A poderosa atuação de Deus no meio do seu povo. Ed.Vida. São
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WRIGHT, Christopher
J. H., Como pregar e ensinar com base no Antigo Testamento. Ed. Mundo Cristão,
São Paulo, SP. 2018
[1]Holocaust
Encyclopedia, O que é genocídio?, https://encyclopedia.ushmm.org/content/pt-br/article/what-is-genocide Acessado
em 12/06/2019
[2] Portal
das Nações Unidas Brasil, “Ameaça de genocídio continua uma realidade nos dias
de hoje, alerta ONU”,https://nacoesunidas.org/ameaca-de-genocidio-continua-uma-realidade-nos-dias-de-hoje-alerta-onu/ Acessado
em 12/06/2019 - “Até hoje, 149 países ratificaram ou aderiram à Convenção
sobre o Genocídio, cujo nome completo é Convenção para a Prevenção e Punição do
Crime de Genocídio. O documento foi assinado após a Segunda Guerra Mundial e o
Holocausto, quando Estados-membros da ONU elaboraram um tratado internacional
que exigia a todos os seus signatários ações necessárias para proibir crimes de
genocídio.”
[3] Anacronismo consiste em atribuir
conceitos e categorias da nossa época para o estudo e julgamento de outros
períodos históricos.
[4] Israel como reino teocrático foi
instrumento singular da vontade e revelação de Deus, mas este caráter distinto
e singular tinha um propósito histórico-salvífico que alcançou realização plena
na vinda do Messias.
[5] Crueldade, iniquidade,
bestialidade e sacrifícios humanos.
[6] COPAN, Paul, Is God a Moral Monster?—Making Sense of the Old Testament God (Grand Rapids: Baker, 2011), p. 171, 176-178, 181
[7] BETTENCOURT, Estevão. Para
entender o Antigo Testamento. Ed. Santuário Aparecida São Paulo.7ª Edição.
1990. p.142-143. - Estevão Bettencourt associa esta ação dos israelitas ao que
ele denominou de “hérem de maldição” (consagração para anátema). Este tipo de
expediente era comum depois de guerras religiosas sendo prática corrente entre
os povos da época (semitas, germanos, ligúrios, gauleses...). O autor vê nesta
ordenança uma acomodação da revelação divina, ao estágio de consciência ética
do período e ao contexto cultural da época. O autor, contudo, atesta que à
medida que a revelação de Deus avança esta mentalidade rude e moralmente
infantil vai sendo corrigida. Veja também DE VAUX, Roland. Instituições
de Israel no Antigo Testamento. São Paulo, SP. Ed. Vida Nova. 2004 p. 299-300
[8] Op. cit.
[9] Termo
que teve origem no leibnizianismo, e se refere ao conjunto de argumentos que,
em face da presença do mal no mundo, que procuram defender e justificar a
crença na onipotência e suprema bondade do Deus criador, contra aqueles que, em
vista de tal dificuldade, duvidam de sua existência ou perfeição.
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